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Orla de Santarém. O point da cidade. |
Há meses atrás, uma das minhas grandes amigas aqui da Holanda me disse que iria passar dois meses em Santarém, no oeste do Pará, estado onde eu nasci. Trata-se da Sheila Sens, uma catarinense que vive na Holanda e nunca tinha pisado no norte do Brasil. Eu dei-lhe dicas de comidas típicas a provar, a conectei com minhas primas e amigas de Belém e dei-lhe um chaveiro com um voodoo da boa sorte, pra ela já ir entrando no clima das lendas e superstições amazônicas.
Mal ela chegou em Santarém, começou a me dizer coisas do tipo "muito amor pelos paraenses". Pra falar a verdade, eu já estava esperando por isso, pois por mais que eu rode o mundo, não consigo encontrar povo mais acolhedor e hospitaleiro que os paraenses, e não consigo encontrar sabores tão exóticos e indescritíveis quanto os da Amazônia. Só indo lá para entender, e agora, a minha amiga me entende, seremos duas em crise de abstinência de açaí, tapioquinha e de "ganhar novos amigos de infância" em qualquer lugar.
Segue abaixo o texto que ela escreveu na sua semana de despedida de Santarém:
VIVER EM SANTARÉM
Por Sheila Sens
E quando você chega
num ambiente completamente estranho, num clima agressivo, com algumas boas
intenções e milhares de dúvidas, você olha em volta, seca um pouco do suor
escorrendo pelo rosto e se pergunta: o que é que eu estou fazendo aqui?
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Banho no rio Tapajós, comunidade de Pimental, oeste do Pará. |
As ruas têm esgoto a céu aberto, os urubus brigam nas calçadas e te impedem a
passagem, as pessoas parecem conviver harmoniosamente com o calor inclemente
que me faz desmaiar dentro de um ônibus sem nem mesmo ser notada pelos locais,
que provavelmente pensaram que eu estava cochilando, e quando reclamo, ouço
risadinhas e consolos: “mas isso é o inverno, mana, espera só pra você ver o
verão...”
Os produtos industrializados
ou de outras regiões são escassos, limitados e caros. A internet é dolorosamente
lenta e propensa a não funcionar quando há alterações climáticas (mais chuva). Sonhos de sentar em um café com internet sem
fio e curtir umas horas do fim do dia... a ideia é simplesmente bizarra. Como é
bizarra a visão de um blazer e calça social que trouxe pra encontros mais
formais... a ideia de me cobrir com qualquer centímetro a mais de pano que o
necessário me induz a gargalhadas descontroladas.
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Passeio na floresta inundada pelas águas das chuvas do "inverno", em Caranazal, Alter do Chão. |
Mas o pequeno mundo
caótico e precário onde vivo neste momento é cercado por floresta e rios. A
floresta e os rios mais bonitos e assustadores que eu pude conhecer na minha
vida. A vida aqui é latente, pujante, a floresta fala, os rios seduzem, as
trovoadas roncam pela noite avisando que estamos na estação das chuvas. No fim
do dia, caminhamos na beirada do rio pra sentir o vento quente e úmido, e
assistir o pôr do sol mais bonito e intenso que se possa imaginar. O sol se põe
no rio, incendiando a água, os céus, trazendo as primeiras estrelas da noite, e
uma nova leva de mosquitos, que debocham abertamente daquele meu repelente
trazido da cidade: “Isso aqui é a Amazônia, mana!”
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Pôr do sol no rio Tapajós, Alter do Chão. |
A mesma Amazônia que
me enche de medo com seus milhares de insetos, répteis e criaturas que ainda
nem sei definir, mas também me faz muito feliz com seus peixes deliciosos e
carnudos. A comida aqui por essas bandas do Pará é intensa, é gostosa, é
suculenta, é viciante. A maioria dos pratos tem nome e origem indígena, que eu
anoto em pedaços de guardanapo pra não esquecer: piracuí, pirarucu, tacacá,
tucupi, taperebá, ingá...
Por toda parte vê-se
traços indígenas e caboclos, a população muito aberta e sorridente, onde um “bom
dia” é dado com a mais calorosa sinceridade que já tive a chance de ouvir. Nunca
se está muito tempo sozinho, nunca falta uma pessoa amiga pra ouvir você com
atenção ou te contar como a família migrou pra essas cercanias, há 30 anos,
encontrando aqui a fartura de uma floresta rica e um chão fértil. O ritmo nessas bandas
é mais lento, ditado pelas ondas de calor úmido. Já disse que faz calor? Por
mais acostumado que o caboclo esteja, há momentos que só um cochilo na rede
repara. E quando a noite cai, uma roda de carimbó parece a coisa mais óbvia a
se fazer, com saias rodopiantes e braços estendidos pro céu, numa oração
expressada em passos ágeis e sorrisos soltos.
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Roda de carimbó, ritmo típico do Pará, para animar a noite. |
E eu, que sou uma
rata urbana, nascida e criada no “lado europeu” do Brasil, com fobia severa a
bichos – destaque para cobras e até mesmo minhocas – e a pele mais sensível e
dada a queimaduras solares que se possa imaginar, o que eu vim fazer aqui, no oeste
do Pará, na floresta amazônica, com planos de me embrenhar no mato visitando
comunidades indígenas e ribeirinhas, subir os rios de barco, dormir em rede, tomar
banho em igarapés, dançar com os indígenas, alimentar botos, fotografar garças,
ser arrebatada pelo pôr do sol?
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Açaí com peixe frito, o mais novo vício da Sheila. |
Vim viver tudo isso.
Vim conhecer a verdadeira face do Brasil, vim aprender, vim quebrar paradigmas
e eliminar preconceitos, vim ficar viciada em açaí (assim purinho, sem açúcar)
e tapioca fresquinha no café da manhã. Aliás, como é mesmo que se vive sem açaí
e tapioca? Vim fazer amigos fantásticos, vim ouvir mazelas de um povo esquecido
pelo governo, mas também histórias da floresta, de amor, de encantados, de
tradições. Eu vim me apaixonar, mana, e por mais improvável que pareça,
descobrir um lugar de onde eu não esteja assim com tanta pressa de partir.
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Banho de despedida no rio Tapajós, em Ponta do Cururu. |