21 de nov. de 2015

Receita de stamppot, um prato tipicamente holandês

Quem disse que na Holanda não existe comida típica? Existe sim e eu adoro todas as três!

Brincadeiras à parte, é fato que a tradição culinária da Holanda não é o seu forte, como eu já disse no post Cozinha afetiva, mas é claro que existem pratos tradicionais daqui e eu estou falando de prato de comida mesmo, e não de salgados fritos e panquecas. Dentre os que eu tive a oportunidade de conhecer, há três que eu adoro: Ewrtensoep (sopa de ervilha), Hachee (ensopado de carne) e Stamppot andijvie met rookworst (purê de batata com escarola e salsicha defumada).

Stamppot andijvie met rookworst (tente pronunciar quando não estiver com fome: stampót andaive mét rôqvrôst)

Os holandeses se orgulham de ser práticos, e praticidade na cozinha é "o prato do dia". O stamppot faz jus a isso e se você já sabe fazer purê, não tem mistério nenhum. Eu não poderia ir embora da Holanda sem experimentar fazer pelo menos um prato típico daqui e escolhi o stamppot exatamente por ser simples e rápido. Como estou conciliando o trabalho com as arrumações e providências para a nossa mudança, sobra pouco tempo para pratos mais elaborados.

Ingredientes

1 kg batatas descascadas e cortadas em cubos
1 col. (sopa) de manteiga
50 ml de leite
1 cebola média fatiada
200 g de bacon em cubinhos ou tiras
150 g de escarola crua cortada em tiras
1 rookworst (salsicha defumada tipicamente holandesa) - opcional
250 ml de molho de carne espesso tipo madeira ou ferrugem (gravy) - opcional
Sal, pimenta branca e noz moscada para temperar o purê a gosto

Modo de preparo

1- Coloque a salsicha defumada para cozinhar por 30 minutos numa panela com água no fogo baixo, sem ferver. A salsicha é um acompanhamento opcional para o stamppot. Eu, como sou gulosa quis abusar da "holandesisse", fiz com bacon e salsicha. Se você não tiver acesso a esse tipo de salsicha, uma linguiça calabresa de boa qualidade grelhada, deve ficar muito bom também.

Cozinhe a salsicha sem deixar a água ferver.

2- Enquanto a salsicha cozinha, refogue a cebola com o bacon numa frigideira em fogo baixo para não torrar. Esse refogado com cebola foi incremento meu, normalmente eles apenas cozinham o bacon na água e depois acrescentam ao purê e existem versões do purê sem bacon também.

Refogado de bacon com cebola para dar uma "adubada" no purê.

3- Coloque as batatas para cozinhar até ficarem bem macias e, enquanto isso, prepare o molho de caldo de carne para a salsicha. Eu usei um pacotinho de molho para stamppot que se encontra nos supermercados daqui, mas você pode fazer um molho de caldo de carne espesso, chamado gravy nos EUA e na Inglaterra, e que equivale ao nosso molho ferrugem, no Brasil. Como eu disse acima, a salsicha e o molho são opcionais, stamppot mesmo é só a batata amassada com as verduras ou legumes, mas esse molho dá um toque especial, mesmo que você faça sem a salsicha.

Caldo de carne tudo de bom! Nesse tinha pedacinhos de cebola torrada.

4- Após escoar a água do cozimento, devolva as batatas para a panela e amasse grosseiramente,  em fogo baixo, junte a manteiga, o leite e a escarola, também conhecida como endívia ou chicória. Depois tempere a gosto com sal, pimenta branca e noz moscada e, por fim, acrescente o refogado de cebola e bacon ao purê.

A escarola pode ser substituída por espinafre, couve ou repolho crú e também por cenoura cozida.

5- Para servir, coloque uma generosa quantidade do purê no meio do prato, a salsicha em cima do purê e o molho de caldo de carne por cima da salsicha. Há quem faça um buraco no meio do purê , tipo uma piscininha, para concentrar o molho lá. Servi a metade da salsicha cortada em rodelas (sem separar as rodelas totalmente) para cada pessoa. Eu poderia ter colocado menos salsicha no prato, daria uma aparência mais elegante, mas depois que vendemos a nossa TV para a mudança, parei de assistir os programas de culinária gourmet e liguei o modo "o céu é o limite". :-)

A salsicha pode ser substituída por ensopado de carne ou até mesmo ser dispensada.

Ficou uma delícia, mas de fato exagerei. Só o purê com a cebola, a escarola e o bacon já daria uma senhora refeição. A quantidade que fiz para dois daria para três tranquilamente. O marido adorou, elogiou muitas vezes e chegou a dizer que foi o melhor stamppot que ele já comeu, mas depois do "prato de peão" que coloquei à frente dele, desconfio que ele não queira comer purê de batata de novo por pelo menos um mês...

Se você resolver fazer stamppot em casa, me conta depois aqui nos comentários como ficou. Eu não tenho muita prática em dar receitas online, então se quiserem uma receita mais confiável e mais simples de stamppot, bem como de vários outros pratos tipicamente holandeses, acesse o site Portal de Holambra clicando aqui. Encontrei esse site por acaso e ele é muito legal. Tem não só várias receitas que você pode baixar em .pdf como também a origem de algumas receitas e vários aspectos culturais  e históricos da Holanda e de Holambra, no Brasil.

Bom apetite e até a próxima! ;-)


10 de nov. de 2015

Viva o amor que liberta!


Foto do meu último aniversário no Brasil com a minha família completa. Eles são a base de onde eu salto.
Na data de hoje completo 41 anos. Esta manhã, quando abri o meu Facebook dei de cara com uma linda homenagem da minha mãe, onde entre outras coisas, ela diz "Meu amor por ti não é egoísta, pois vivi na pele e coração a alegria de amar e ser amada intensamente e é exatamente o que mais te desejo!" e foi pensando nesse amor que liberta que me inspirei para escrever esse post.

Eu não sou mãe, mas imagino o que sente uma mãe quando deixa o filho na escola pela primeira vez... a partir dali o mundo dele não se resume mais às paredes de casa e essa será só a primeira de milhares de outras despedidas.

Lembro-me de crescer ouvindo minha mãe dizer "não criei meus filhos pra mim, mas sim pro mundo", e no fundo eu achava que ela dizia isso da boca pra fora, mas aí chegou o dia em que eu estava com 25 anos, havia decidido que era hora de sair de casa, tinha acabado de me formar em psicologia e queria fazer especialização no Rio de Janeiro (nessa época morávamos em Fortaleza). 

Eu estava dobrando as últimas peças de roupa para pôr na mala, quando desatei a chorar. Minha mãe, que estava me ajudando nas arrumações, me abraçou e deu-se o nosso primeiro pequeno diálogo que eu nunca esquecerei:

- O que foi, Larissa?
- Eu tô com saudade de casa, mãe.
- Minha filha, você está indo porque escolheu, e se você não gostar, você sabe que a hora que quiser você volta. Aqui é e sempre será a tua casa, mas vai filha. Tudo que eu e teu pai mais queremos é ver vocês bem encaminhados na vida.

Minha mãe, desde sempre me dando a mão para eu ir mais longe.
Eu fui e é claro que nunca mais voltei. A minha mãe sabia que eu não voltaria, e mesmo com o coração apertado de quem vê o filho partir, ao perceber a minha angústia e o meu medo, com as suas palavras ela teceu uma rede de segurança por baixo dos meus pés e me impulsionou a voar. Naquele momento, eu entendi que ela sempre foi sincera quando dizia ter criado os filhos para o mundo. Naquele momento ela me ensinou o que é o amor que liberta.

Os anos se passaram, eu já vivia no Rio de Janeiro há 7 anos quando conheci o Filipe. Depois de 1 ano de relacionamento, chegou a hora de ele voltar para Portugal e decidimos que iríamos viver juntos no Porto, pois não queríamos ter uma relação à distância. Meus pais ainda moravam em Fortaleza e quando comuniquei minha decisão a eles por telefone, eles ficaram genuinamente felizes por mim e, mais uma vez, me incentivaram a partir e me asseguraram de que se eu não gostasse da experiência, tinha para onde voltar. 

É preciso muita confiança na educação que se dá a uma filha para incentivá-la a partir para outro continente para viver com um homem que eles nem conheciam direito. A minha mãe conhecia o Filipe "de raspão" e o meu pai nunca chegou a conhecê-lo pessoalmente. Ele faleceu 4 meses após eu ter me mudado para Portugal, mas mesmo apenas através de bate-papo pelo Skype, deu tempo de se tornarem grandes amigos. Felizmente, eu fui ao Brasil acompanhar a cirurgia do meu pai e estava lá quando ele faleceu, e mesmo tendo todas as razões do mundo para pedir que eu ficasse mais tempo ao lado dela e de meus irmãos naquele momento, a minha mãe foi comprar uma camisola super sexy pra mim e ao me oferecê-la, deu-se o nosso segundo pequeno diálogo que eu nunca esquecerei:
Meu pai, sempre me dando segurança para voar.

- Minha filha, eu estou sentindo a maior dor do mundo agora porque vivi o maior amor do mundo com o teu pai. Eu tô triste agora porque fui muito feliz com ele, e a única coisa que eu desejo é que vocês [eu e meus irmãos] sejam felizes com os parceiros de vocês como eu fui com o teu pai. Por isso, por favor, volta pro lado do teu marido, sejam unidos e aproveitem cada segundo dessa vida juntos, porque ela passa rápido demais...

Isso não foi bem um diálogo, foi mais um monólogo porque ela falava e eu só chorava. E hoje, quando li a homenagem que ela fez para mim pelo menu aniversário, fui catapultada no tempo para aquele momento e me dei conta do quanto essas atitudes dela e do meu pai sempre me ajudaram a superar os momentos mais difíceis longe de casa. Se sempre que eu falasse com eles ou meus irmãos após ter me mudado para a Europa eles estivessem tristes e chorosos, indiretamente me pedindo para voltar, eu não teria conseguido viver tanto tempo por aqui. 

Quando atualmente as pessoas me perguntam "mas você tem coragem de começar tudo de novo num quarto país"? (Estamos nos mudando para a França, depois de Brasil, Portugal e Holanda.) Eu costumo responder que sim porque na verdade, a decisão mais difícil que tomei foi quando resolvi sair do Brasil. Agora, se vou para a direita ou para a esquerda, não faz muita diferença. Porém, no fundo do meu coração, sei que o que me dá essa coragem mesmo é a tal rede de segurança que os meus pais teceram sob os meus pés, confiando em mim, nas minhas escolhas e me impulsionando a seguir em frente por mais medo que eu tivesse e eles também. 

Não só pelas palavras, mas principalmente pelo exemplo, eles me ensinaram que o verdadeiro amor existe, liberta e se alegra com a felicidade do outro, mesmo que essa felicidade seja há milhares de quilômetros de distância. É por isso que hoje o aniversário é meu, mas os parabéns são para eles. Um brinde a todos os pais que educam seus filhos para serem livres.     

3 de nov. de 2015

Cenas dos próximos capítulos

Foto do parque com a torre Euromast ao fundo, um dos símbolos de Roterdã.

Senti a necessidade de escrever a postagem "A Holanda é linda, mas infelizmente não é o meu número" quando comecei a pesquisar sobre a cidade que será o nosso próximo destino. Durante a pesquisa, observei que a grande maioria dos depoimentos publicados são de pessoas que estão felizes da vida com o local onde vivem, quase todos os blogues têm aquela mensagem subliminar "eu moro onde você passa férias e essas são as minhas dicas de ouro".

Pensei cá com os meus botões: E por que não escrever um texto sobre a nossa difícil e frustrante tentativa de se enquadrar na Holanda? Pelas conversas que temos com os nossos amigos também imigrantes por aqui, todos se sentem mais ou menos como nós e quase todos os que não têm vínculo conjugal com alguém de nacionalidade holandesa têm planos de partir em breve ou assim que possível. E foi assim que resolvi escrever aquele texto, pois acredito que o outro lado da moeda migratória precisa sair das rodinhas de bate-papo entre imigrantes e ser visto por quem está considerando imigrar.


Enquanto escrevia, eu sentia o meu coração acelerado. Estava triste e ansiosa ao mesmo tempo. Triste pelo contexto da situação e ansiosa para ver a reação dos leitores. Quando cliquei em "Publicar" e compartilhei o texto no Facebook, comecei a me preparar para receber críticas e opiniões que discordariam da minha, e pode ser que ainda venha a recebê-las, mas o fato é que até agora, todas as pessoas que se manifestaram, de alguma forma se identificaram com o texto ou apreciaram-no. Se você ainda não leu a postagem da qual estou falando, clique aqui

Eu não esperava que tantas pessoas imigradas em países tão diferentes se revissem na nossa história, mas pensando bem, isso comprova que o problema não está na Holanda, muito menos no povo holandês, mas sim nas dificuldades implícitas à imigração em países com cultura e funcionamento tão diferentes dos nossos. Recebemos mensagens de amigos que vêm pensando em imigrar e que se sentiram divididos após ler aquela postagem. Apesar de o meu objetivo ser alertar as pessoas para esse outro lado da moeda, como eu disse acima, não quero que concluam que imigrar não vale a pena, vale e muito! Mas tudo depende dos seus objetivos na imigração e das suas prioridades na vida. 


Quando nós constatamos que não estávamos felizes aqui na Holanda, imediatamente o Filipe começou a procurar emprego em Portugal e no Brasil porque tudo o que queríamos era voltar para casa (eu sou tradutora freelancer, posso trabalhar em qualquer lugar), mas como atualmente está quase impossível conseguir emprego na área dele nesses países, resolvemos incluir a França nessa busca também, já que ele fala francês. Resumo da ópera: vamos mudar para Montpellier, no Sul da França!

Mais uma vez, vamos nos lançar numa cidade onde nunca estivemos, onde não conhecemos uma alma viva e euzinha aqui vou ter que aprender mais um idioma. Confesso que me dá uma certa preguiça começar tudo de novo, mas por outro lado, estamos muito empolgados com a mudança e estamos apostando todas as nossas cartas para vivermos lá mais felizes e integrados do que estamos vivendo aqui. Fatores favoráveis não faltam: eu sempre quis aprender francês (acho chiquérrimo), a região é super ensolarada, tem praia a poucos minutos da cidade, estação de esqui nos Pirineus a 1h30min de carro, produz vinhos maravilhosos e (eu já disse praia?), estaremos no país onde gastronomia é assunto seríssimo e tenho certeza que vamos tirar bastante proveito disso.

Vou sentir muita falta da minha grande companheira e de ir com ela para todo lado.

Como veem, ainda tem muita água pra passar debaixo dessa ponte até a gente conseguir voltar pra casa, e eu vou continuar relatando nossas experiências aqui no blogue. Neste momento, estamos em fase de despedida da Holanda e dos amigos queridos que fizemos aqui. Faltam poucas semanas para partirmos e estes dias têm sido agridoces. Não é fácil nos desfazermos das nossas pequenas conquistas, dizer adeus a pessoas incríveis que fizeram parte da nossa vida nos três últimos anos e, ao mesmo tempo, lidar com o frio na barriga de quem vai mergulhar num mar desconhecido mais uma vez. O jeito é tampar o nariz e se atirar!

Aguardem as cenas dos próximos capítulos... ;-)

PS: Ilustrei essa postagem com fotos do outono holandês porque acho o Outono super nostálgico, e nostalgia é o que não falta por aqui ultimamente. 




28 de out. de 2015

A Holanda é linda, mas infelizmente não é o meu número

Bem que eu sempre achei esses tamancos de madeira bastante desconfortáveis.

Sabe quando você vê um sapato lindíssimo na vitrine, entra na loja, experimenta, sente que aperta um pouco, mas compra mesmo assim porque espera que com o uso ele amacie?

Pois é, está sendo mais ou menos essa a minha experiência na Holanda. 

A Holanda é aquele país lindo, florido e organizado que todo mundo conhece pelo menos dos cartões postais, e foi com essa ideia em mente que eu e meu marido nos mudamos para cá há 3 anos atrás. Nós achávamos que o estilo despojado, casual e igualitário dos holandeses tinha tudo a ver conosco, e acreditávamos que bastaria aprendermos o idioma local para nos sentirmos 100% em casa.

É lógico que sabíamos que alguns ajustes nos nossos hábitos seriam necessários, aliás, se você não está disposto a mudar seus hábitos, a se relacionar com as pessoas de forma diferente e a aceitar que as suas verdades não são universais, é melhor ficar onde você está, porque mudar de país impõe uma mudança de 180 graus na sua vida, e essa mudança é crônica e irreversível. 

Voltando ao assunto, nós sabíamos que a vida na Holanda não seria parecida com o que já tínhamos vivido no Brasil e em Portugal, mas contávamos apenas com a impressão que tivemos quando viemos à Holanda de férias, e foi em busca "desse sapato lindíssimo que vimos na vitrine" que embarcamos nessa experiência. Mais uma lição aprendida para todo o sempre: viver num país nunca é a mesma coisa do que passar as férias, e o tratamento que os turistas recebem dos locais também não é igual ao dado aos imigrantes. 

Três anos se passaram, aprendemos começamos a arranhar o idioma, fizemos amigos (a maioria também estrangeiros) e, mesmo sem querer, adotamos o estilo de vida caseiro e reservado que no geral as pessoas levam por aqui. De repente, eu e Filipe, boêmios que somos, estávamos de pijama às 22:00 de sexta-feira, nos sentindo "velhos" e solitários. 

Mesmo que você não queira, o sistema te leva a viver assim. Os restaurantes encerram às 22h, os bares à 1h e as boates às 2h da manhã (isso em Roterdã, cidade onde moramos). Todos os nossos amigos moram noutras cidades, então não dá pra esticar muito quando nos encontramos porque temos que ficar atentos ao horário do último trem e, fora isso, o clima frio e chuvoso incentiva a ficar em casa. As pessoas costumam se reunir quando há um motivo especial, e tudo é programado com meses de antecedência, compromisso com data e hora marcada na agenda, mesmo que seja só para um café. E por falar em café, abro aqui um parêntese para os amigos Tugas, os cafés na Holanda fecham às 18h, portanto, podem esquecer aquele hábito de ir ao café após o jantar...

Como eu ia dizendo, tudo é sempre programado. Isso é muito bom nos serviços, até para falar com o gerente da sua conta no banco tem que ser com agendamento e os horários são sempre respeitados, mas na vida social, a gente sente muita falta do imprevisto, do improviso, daquele plano de última hora que acabou sendo a melhor noite dos últimos tempos, da espontaneidade de um encontro casual que acaba em vários chopinhos no bar da esquina e do amigo que liga do nada e diz "vamos pegar um cineminha hoje?"

Vocês podem achar que estou exagerando, mas eu nunca me senti vivendo numa sociedade tão formatada quanto a holandesa. Para onde quer que eu olhe, vejo padrões que se repetem na fala e no comportamento das pessoas. O país foi todo projetado, não há natureza selvagem e a paisagem é basicamente a mesma de Norte a Sul, bem como a arquitetura. Felizmente, existem as 4 Estações para quebrar um pouco da monotonia, mas depois que as coisas deixam de ser novidade para quem vem de fora, elas passam a ser previsibilidade e repetição. Pelo menos foi assim para mim.

O fato é que mesmo vivendo num dos países com a melhor qualidade de vida do mundo, eu e o Filipe começamos a nos sentir insatisfeitos, entediados, solitários e, mais do que nunca, estrangeiros com saudade de casa. É óbvio que há milhares de pessoas que se mudaram para cá e encontraram na Holanda o país dos seus sonhos e não querem sair daqui tão cedo, basta digitar no Google "viver na Holanda" e você encontrará centenas de blogues de pessoas testemunhando isso, mas aqui no Por falar em saudade, eu conto a minha história, a minha experiência pessoal, e é com tristeza, mas com muita lucidez, que compartilho com vocês que mesmo após 3 anos de tentativa, o sapato não amaciou. Definitivamente, a Holanda não é o meu número.

30 de set. de 2015

Viva o Dia Mundial do Tradutor, o profissional invisível


Quando comecei a minha atividade como tradutora, eu não estava muito feliz com ela. Na realidade, eu estava frustrada porque via cada vez mais distante o sonho de voltar a exercer a minha profissão de psicóloga. Afinal, eu havia estudado por cinco anos e havia dado trocentas horas de aulas de inglês para ajudar meu pai a pagar a minha faculdade. Toda vez que eu arranjava um novo emprego fora da psicologia, era a mesma sensação de ambivalência: Tenho emprego, posso pagar as contas... x Adeus consultório, quem sabe um dia...

No início, eu achava que eram um desperdício de vida as horas que eu passava diante do computador traduzindo milhares de palavras sobre porcas e parafusos ou aqueles longos "Termos e Condições" de software que ninguém lê e clica logo no "Concordo que li e aceito". Hoje em dia, a minha opinião e o meu sentimento quanto a ser tradutora mudaram completamente.

Tentem imaginar o que seria do mundo sem os tradutores. Ninguém poderia ler livros ou assistir a filmes em idiomas que desconhecessem; médicos não poderiam usar dispositivos que tivessem seus manuais descritos em outros idiomas; ninguém poderia celebrar contratos internacionais, etc., etc., etc. 

Sentada aqui na sala da minha casa, só eu e o meu computador, é fácil perder a noção da importância do que faço. É mais fácil ainda não ter o reconhecimento dos outros, que acham que o tradutor (principalmente o freelancer, como eu) tem um trabalho fácil, que qualquer um pode fazer e que tem a vida boa; acorda a hora que quer, não tem chefe, trabalha as horas que quiser e pode tirar quantos dias de folga lhe convier. O que as pessoas não enxergam, é que cada cliente que temos é um chefe com as suas especificidades e exigências, as horas de trabalho são regidas pelos prazos de entrega dos projetos e a hora de acordar pode variar, mas também nunca sabemos a hora que vamos dormir. Isso para não falar que o tradutor freelancer não recebe férias, auxílio-doença, 13.º salário nem subsídio de Natal.

É fácil não enxergar tudo isso. É fácil não reconhecer a importância do trabalho do tradutor simplesmente porque é um trabalho que sempre está lá. Eu comparo ao trabalho da dona de casa (ou do dono de casa) que só é notado pelos outros membros da família quando não é feito, quando o almoço não ficou pronto ou quando as roupas não foram lavadas. Da mesma forma, o trabalho do tradutor só é notado quando ele erra, quando faltou uma legenda ou quando o aparelho que você comprou pela Internet não vem com explicações no seu idioma. E assim seguimos nós, os tradutores freelancers, de palavra em palavra, com dores nas costas e nos punhos, com a vista cansada, com a ansiedade de um prazo que se aproxima e que não podemos adiar, mas, acima de tudo, com a plena noção de que mesmo sendo "profissionais invisíveis", nós ajudamos o mundo a girar.

Hoje em dia, tenho um prazer enorme no que faço, tenho uma admiração gigante pelos meus colegas, tenho a certeza de que mesmo não atuando como psicóloga, estou ajudando as pessoas, e quando preencho um formulário que pergunta qual a minha profissão, preencho com todo orgulho: TRADUTORA.

Parabéns a todos os profissionais da tradução! Quem sabe num futuro breve, até o Google vai nos parabenizar pelo nosso dia. 

Esse texto é dedicado aos colegas e clientes com quem aprendo diariamente e com os quais sempre pude contar. Sem vocês (e os glossários), nada disso seria possível. Muito obrigada e "vamo que vamo"!  

10 de ago. de 2015

A moral de cada um de nós é a moral de todos

Ultimamente, tem pipocado na Internet textos de brasileiros que vivem no exterior falando dos mil e um motivos pelos quais não querem voltar para o Brasil, enaltecendo os países e as sociedades onde eles atualmente vivem e, mais recentemente, tenho lido textos de brasileiros que vivem no país enumerando os defeitos e os maus hábitos sociopolítico-econômicos do brasileiro no geral.

Eu concordo e discordo de muita coisa que li e não pretendo ser mais uma apontando os "milhares de defeitos" do povo brasileiro e fazendo listas de como a vida é perfeita num país de "primeiro mundo". Onde existe ser humano, existe imperfeição e acho que todo mundo que é minimamente informado já sabe que os políticos não vêm de Marte, mas sim da mesma sociedade que vota neles e que se comporta da mesma forma que eles em todas as esferas sociais.

O que me inspirou a escrever esse texto foram duas experiências que tive recentemente aqui na Holanda e que me fizeram questionar: Será que é tão difícil assim fazer o que é certo?
Vou contar as histórias que vão ilustrar melhor o que eu quero dizer.

História 1

Ano passado minha mãe veio passar um mês aqui comigo e trouxe o laptop que ela tinha acabado de adquirir no Brasil e ao configurá-lo, esqueceu da senha que tinha usado para poder iniciá-lo. Como eu também não consegui recuperar a senha, levamos o computador para uma loja onde o técnico que nos atendeu disse que era possível recuperar a senha e que o orçamento ficaria em torno de €40,00, caso nenhum programa e/ou o sistema operacional tivesse que ser reinstalado, o que aumentaria o valor. Deixamos o laptop na loja pro serviço ser feito e quando fomos buscá-lo, o técnico disse que o problema tinha sido mais simples de resolver do que eles haviam imaginado e que como não houve necessidade de reinstalar nada, o valor do serviço ficaria em €20,00. Neste momento, minha mãe me olhou num misto de felicidade e surpresa dizendo: "Minha filha, como eles são honestos aqui!" Pagamos e fomos super felizes para casa.

História 2

Achar um bom cabeleireiro aqui na Holanda tem sido uma saga e eu basicamente já desisti. Ultimamente, vinha pintando eu mesma os meus cachos e só corto as pontas num salão que na verdade é uma academia de cabeleireiros, onde você é atendido por um aluno prestes a tirar o diploma que, por sua vez, é supervisionado por um professor durante o atendimento. Resolvi que estava na hora de pintar direito o meu cabelo, pois a lambança que faço no banheiro pra pintá-lo me fez achar que pagar até €50,00 no salão valeria a pena (no site deles diz "coloração a partir de €30,00"). Enquanto eu decidia a tonalidade com a moça que me atendeu, resolvi adquirir também um shampoo e uma máscara hidratante especial para cabelos tingidos. Quando a professora veio com o orçamento, eu quase caí pra trás: €81,00, incluindo os produtos. Eu disse que não estava a espera de pagar isso e que sendo assim não levaria os produtos. O orçamento ficou então em €67,00. 
Passei o atendimento todo super arrependida de ter ido lá e jurei pra mim mesma que não voltaria mais, não valia a pena. Mais tarde, lá vem a professora de novo com o papel do orçamento, mas dessa vez, para me dar uma ótima noticia: "Afinal, usamos 1 tubo de tinta a menos do que havíamos previsto e o seu valor final vai ficar em €50,00." Alívio imediato! Paguei exatamente o que havia imaginado (e que no fundo, achava que era justo pro tamanho do meu cabelo). Saí de lá feliz, grata pela honestidade deles e certa de que voltarei e indicarei o salão para as minhas amigas.  

Moral das histórias
      
Em nenhuma das situações acima os prestadores dos serviços tinham a obrigação comercial de diminuir o valor do orçamento, eles prestaram o serviço solicitado e eu havia concordado com o orçamento original. Eu nunca iria saber que o técnico teve menos trabalho do que imaginava ter para recuperar a senha do PC da minha mãe e eu também nunca iria saber a quantidade de tubos de tinta usados para tingir o meu cabelo. Em ambos os casos, eles agiram dessa forma porque moralmente era o certo a ser feito e eles lucraram muito mais do que imaginavam, pois ganharam uma cliente que voltará sempre e os recomendará para os amigos.

Moral de cada um e de todos

Isso me fez lembrar de todas as vezes que a conta do restaurante veio errada a meu favor e eu avisei ao garçom, mesmo sob protestos e piadinhas de pessoas que estavam comigo na mesa. E me fez pensar também em todas as vezes que meus clientes me alocam projetos de revisão em que calculam me pagar 2 horas, por exemplo, e eu faço a revisão em 1 hora e aviso a eles, cobrando apenas o equivalente ao tempo que eu realmente gastei naquele projeto. Você acha que eu sou boba em agir assim e que eu deveria ser mais esperta? Então, você também acha que está certíssimo um administrador de uma obra pública orçar o projeto em 100 milhões, gastar metade e embolsar o resto. É A MESMA SITUAÇÃO, guardadas as devidas proporções.

Eu não sou perfeita, estou longe disso, mas ajo de acordo com o que a minha consciência considera certo e com o que está dentro dos meus padrões éticos e morais. Eu sei que há muita gente que não tem moral nem ética nem honestidade, mas eu sei também que essas pessoas são a minoria numa sociedade. A maioria age de forma incorreta por osmose, porque "todo mundo age assim" e se você não for esperto você é o único que se ferra. Pois bem, meus amigos, o brasileiro, no geral, e na minha humilde opinião, é honesto, tem moral e tem ética. Prova disso é que basta ele sair do país para passar a agir como manda o figurino dos outros países, seja ele de qual classe social for, portanto, eu enquadro a grande maioria que age mal no Brasil na categoria dos que agem assim por osmose.

Se cada indivíduo passar a agir de acordo com o que é moralmente certo, pode até ser apontado como o "bobo da turma" inicialmente, mas garanto que vai dar o exemplo para os seus filhos e vai influenciar as pessoas ao seu redor, ajudando a gerar uma sociedade onde se pode confiar no próximo, seja ele o taxista ou o presidente do país. Com o tempo, os que agem certo passarão a ser a grande maioria e os "malandrinhos de plantão" passarão a ser a exceção, casos isolados que não serão exemplos a serem seguidos, como acontece aqui na Holanda e em qualquer lugar do mundo, pois se existe um paraíso, ele certamente não está na face da Terra. No final das contas, a moral de cada um de nós se torna a moral de todos.

6 de ago. de 2015

Parada do orgulho gay de Amsterdã - Agora a palavra "orgulho" faz mais sentido

Você que quer boicotar empresas que usam casais gays em seus comerciais, aproveita e se muda pra Plutão. 

Quem me conhece já ouviu eu me queixar do clima na Holanda, da falta de tradição culinária holandesa e de outras coisitas mais, mas uma coisa é certa, em termos de laicidade do Estado e de legislação avançada, a Holanda está anos luz à frente da maioria dos países do mundo. Como muitos sabem, foi o primeiro país a legalizar o casamento homoafetivo, em 2001, e em 2009, oficializou a adoção. Tendo conquistado muitos direitos e, principalmente, respeito, os homossexuais na Holanda agem com muita naturalidade e é comum vermos casais despedirem-se com um beijo na porta de casa ou antes de entrar no trem.

Vista geral do trânsito de barcos após o desfile.

Sendo apologista do amor livre para todos os seres humanos e tendo familiares e amigos gays cuja felicidade eu sempre apoiei, eu já tinha ido às paradas do orgulho gay de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas até então, tudo para mim era uma grande festa onde meus amigos podiam beijar seus namorados na rua e ser quem são por pelo menos um dia.

Barco dos funcionários dos Correios com sua coreografia de caixas de encomendas. 

Este ano, tive a oportunidade de ir assistir à parada de Amsterdã, e como não poderia deixar de ser, a parada de lá acontece nos canais da cidade. Eu já tinha visto fotos das paradas anteriores na Internet e tinha a impressão de que era uma mistura de parada com carnaval, porque os barcos são enfeitados como carros alegóricos e muitas pessoas se fantasiam. Eu não estava enganada, só não estava preparada para o fator surpresa.

Barco dos serviços de emergência. Desculpem a foto tremida. :-)

Como toda parada do orgulho gay que se preze, a de Amsterdã também é um desfile de homens e mulheres com corpos esculturais, muitas drag queens, muitas cores, muita música e muita alegria, o fator surpresa foi ver o que apelidei de barcos funcionais. Lá estava eu me divertindo e assistindo a barcos passarem com pessoas fazendo coreografias, geringonças que subiam como palanques de shows da Madonna para casais gays se beijarem lá em cima, quando de repente, passa na nossa frente um barco com pessoas "fantasiadas" de militares... "Peraí, eles não estão fantasiados, estão fardados mesmo!" Era o barco do Ministério da Defesa, e bem em frente de onde estávamos a música que tocava no barco parou e todos eles fizeram continência por alguns segundos, depois voltaram a dançar e a acenar para o público nas margens do canal.

O barco do Ministério da Defesa. Foto retirada do Google Images.

Alguns barcos depois, vieram os socorristas e enfermeiros que trabalham nas ambulâncias e serviços de emergência, noutro barco, os funcionários dos correios fazendo coreografias com caixas de encomendas nas mãos, alguns minutos depois, o barco da polícia, que não estava fazendo a patrulha do evento, mas sim participando do evento e vinha seguido do barco dos bombeiros.

Barco da Polícia. De onde eu estava não consegui fotos muito boas, mas se você clicar nas fotos, talvez as veja melhor.

Eu pensei com os meus botões: agora eu entendo o que a palavra "orgulho" faz nos títulos das paradas gays. Se a gente parar para pensar, essa é a verdade inegável, vamos acabar com essa hipocrisia de achar que não há homossexuais no Exército, na Marinha, na Polícia, nos Bombeiros, nas Emergências, nos Ministérios, nos Parlamentos, nos Laboratórios e em toda e qualquer profissão da face da terra. E vamos assumir que com quem essas pessoas se deitam não influencia em nada a sua competência e o exercício dos seus deveres para com a sociedade. Em vez de tentar mascarar o óbvio, vamos assumi-lo, vamos colocar essas pessoas em "pedestais" e aplaudi-las por tudo o que são e o que fazem por nós pelo menos uma vez ao ano. Não deve ser nada fácil ser um militar e arriscar a própria vida na guerra em nome de uma sociedade que lhe "deserdaria" se soubesse que ele é gay ou ser um socorrista num plantão da madrugada salvando a vida de quem lhe daria porrada se o visse andando de mãos dadas com seu namorado na rua.

Naquele dia, eu senti orgulho de viver numa sociedade onde as pessoas podem ser quem são com muito orgulho, com muito amor!

PS: Para ver fotos dos barcos mais alegóricos e da parada no geral, dê uma olhada no Google em Amsterdam Gay Pride Canal Parade 2015. ;-)

28 de mai. de 2015

Visita no blog - Experiências de uma grande amiga no meu Pará amado.

Orla de Santarém. O point da cidade.

Há meses atrás, uma das minhas grandes amigas aqui da Holanda me disse que iria passar dois meses em Santarém, no oeste do Pará, estado onde eu nasci. Trata-se da Sheila Sens, uma catarinense que vive na Holanda e nunca tinha pisado no norte do Brasil. Eu dei-lhe dicas de comidas típicas a provar, a conectei com minhas primas e amigas de Belém e dei-lhe um chaveiro com um voodoo da boa sorte, pra ela já ir entrando no clima das lendas e superstições amazônicas.
Mal ela chegou em Santarém, começou a me dizer coisas do tipo "muito amor pelos paraenses". Pra falar a verdade, eu já estava esperando por isso, pois por mais que eu rode o mundo, não consigo encontrar povo mais acolhedor e hospitaleiro que os paraenses, e não consigo encontrar sabores tão exóticos e indescritíveis quanto os da Amazônia. Só indo lá para entender, e agora, a minha amiga me entende, seremos duas em crise de abstinência de açaí, tapioquinha e de "ganhar novos amigos de infância" em qualquer lugar.

Segue abaixo o texto que ela escreveu na sua semana de despedida de Santarém:


VIVER EM SANTARÉM
Por Sheila Sens

E quando você chega num ambiente completamente estranho, num clima agressivo, com algumas boas intenções e milhares de dúvidas, você olha em volta, seca um pouco do suor escorrendo pelo rosto e se pergunta: o que é que eu estou fazendo aqui?

Banho no rio Tapajós, comunidade de Pimental, oeste do Pará.

As ruas têm esgoto a céu aberto, os urubus brigam nas calçadas e te impedem a passagem, as pessoas parecem conviver harmoniosamente com o calor inclemente que me faz desmaiar dentro de um ônibus sem nem mesmo ser notada pelos locais, que provavelmente pensaram que eu estava cochilando, e quando reclamo, ouço risadinhas e consolos: “mas isso é o inverno, mana, espera só pra você ver o verão...”

Os produtos industrializados ou de outras regiões são escassos, limitados e caros. A internet é dolorosamente lenta e propensa a não funcionar quando há alterações climáticas (mais chuva).  Sonhos de sentar em um café com internet sem fio e curtir umas horas do fim do dia... a ideia é simplesmente bizarra. Como é bizarra a visão de um blazer e calça social que trouxe pra encontros mais formais... a ideia de me cobrir com qualquer centímetro a mais de pano que o necessário me induz a gargalhadas descontroladas.

Passeio na floresta inundada pelas águas das chuvas do "inverno", em Caranazal, Alter do Chão.

Mas o pequeno mundo caótico e precário onde vivo neste momento é cercado por floresta e rios. A floresta e os rios mais bonitos e assustadores que eu pude conhecer na minha vida. A vida aqui é latente, pujante, a floresta fala, os rios seduzem, as trovoadas roncam pela noite avisando que estamos na estação das chuvas. No fim do dia, caminhamos na beirada do rio pra sentir o vento quente e úmido, e assistir o pôr do sol mais bonito e intenso que se possa imaginar. O sol se põe no rio, incendiando a água, os céus, trazendo as primeiras estrelas da noite, e uma nova leva de mosquitos, que debocham abertamente daquele meu repelente trazido da cidade: “Isso aqui é a Amazônia, mana!”

Pôr do sol no rio Tapajós, Alter do Chão.

 A mesma Amazônia que me enche de medo com seus milhares de insetos, répteis e criaturas que ainda nem sei definir, mas também me faz muito feliz com seus peixes deliciosos e carnudos. A comida aqui por essas bandas do Pará é intensa, é gostosa, é suculenta, é viciante. A maioria dos pratos tem nome e origem indígena, que eu anoto em pedaços de guardanapo pra não esquecer: piracuí, pirarucu, tacacá, tucupi, taperebá, ingá...

Por toda parte vê-se traços indígenas e caboclos, a população muito aberta e sorridente, onde um “bom dia” é dado com a mais calorosa sinceridade que já tive a chance de ouvir. Nunca se está muito tempo sozinho, nunca falta uma pessoa amiga pra ouvir você com atenção ou te contar como a família migrou pra essas cercanias, há 30 anos, encontrando aqui a fartura de uma floresta rica e um chão fértil. O ritmo nessas bandas é mais lento, ditado pelas ondas de calor úmido. Já disse que faz calor? Por mais acostumado que o caboclo esteja, há momentos que só um cochilo na rede repara. E quando a noite cai, uma roda de carimbó parece a coisa mais óbvia a se fazer, com saias rodopiantes e braços estendidos pro céu, numa oração expressada em passos ágeis e sorrisos soltos.

Roda de carimbó, ritmo típico do Pará, para animar a noite.

E eu, que sou uma rata urbana, nascida e criada no “lado europeu” do Brasil, com fobia severa a bichos – destaque para cobras e até mesmo minhocas – e a pele mais sensível e dada a queimaduras solares que se possa imaginar, o que eu vim fazer aqui, no oeste do Pará, na floresta amazônica, com planos de me embrenhar no mato visitando comunidades indígenas e ribeirinhas, subir os rios de barco, dormir em rede, tomar banho em igarapés, dançar com os indígenas, alimentar botos, fotografar garças, ser arrebatada pelo pôr do sol?

Açaí com peixe frito, o mais novo vício da Sheila.

Vim viver tudo isso. Vim conhecer a verdadeira face do Brasil, vim aprender, vim quebrar paradigmas e eliminar preconceitos, vim ficar viciada em açaí (assim purinho, sem açúcar) e tapioca fresquinha no café da manhã. Aliás, como é mesmo que se vive sem açaí e tapioca? Vim fazer amigos fantásticos, vim ouvir mazelas de um povo esquecido pelo governo, mas também histórias da floresta, de amor, de encantados, de tradições. Eu vim me apaixonar, mana, e por mais improvável que pareça, descobrir um lugar de onde eu não esteja assim com tanta pressa de partir.


Banho de despedida no rio Tapajós, em Ponta do Cururu.





 

14 de mai. de 2015

14.05.1940, o dia em que o centro de Roterdã foi reduzido a pó.

Neste preciso dia, há 75 anos atrás, bastaram 15 minutos de bombardeio aéreo e o centro da cidade de Roterdã que era assim:

Centro de Roterdã antes do bombardeio.

Ficou assim:

Apenas as igrejas foram poupadas das bombas e alguns prédios escaparam por muita sorte.

No dia 10 de maio de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães tomaram as pontes sobre o rio Maas (que corta a cidade) na tentativa de avançar em solo holandês. Durante os dias seguintes, houve resistência das tropas holandesas, e a forma que os alemães encontraram para fazer a cidade se render, foi este horrendo bombardeio ao centro da cidade no dia 14 de maio. Mais de 30.000 prédios foram destruídos, 77.607 pessoas ficaram desalojadas e em torno de 800 a 900 pessoas perderam suas vidas entre as 13:27 e 13:40 daquela tarde. 

Atualmente, a área bombardeada está delimitada nos chãos da cidade por símbolos chamados de "Brandgrens" (fronteira de fogo), pois como é de se imaginar, após o bombardeio, um gigantesco incêndio tomou conta de toda a área e áreas adjacentes.

Brandgren. Observem os detalhes da imagem. É de arrepiar.
Durante o dia de hoje, há várias solenidades acontecendo pela cidade em memória do acontecido e dos que perderam suas vidas naquele dia. Há discurso do prefeito, peças de teatro de rua, palestras, concertos musicais, uma corrida acontecerá a noite ao longo da linha dos Brandgrens e, esta linha, deverá ser projetada luminosamente no céu. 

Projeção dos Brandgrens em celebrações anteriores.
Desde que vim viver na Europa, aprendi a respeitar as pessoas mais "pessimistas", "negativas", "taciturnas", "tristes", como queiram, o fato é que uma coisa é estudar sobre as Grandes Guerras nos livros e ver nos filmes, outra coisa é ter ouvido as sirenes tocarem e caminhar sobre o mesmo solo em que as bombas explodiram, ter perdido parentes, amigos, casa, e dar de encontro com estátuas e monumentos que te remetem à essas perdas a todo tempo. Uma guerra deixa marcas por gerações e gerações, e em dias como o de hoje, mesmo que faça sol, os corações estão nublados.

Para quem tem interesse neste assunto da Segunda Guerra Mundial, bom preparo físico e pretende visitar Roterdã, deixo abaixo um mapa da rota dos Brandgrens, são 12 km que podem ser percorridos a pé ou de bicicleta.

Rota dos Brandgrens, a fronteira do fogo.
E para quem quiser se aprofundar nos fatos e ver mais imagens da cidade bombardeada, indico o site (em inglês e holandês) onde busquei os dados para essa postagem: Brandgrens

Todas as imagens desta postagem foram retiradas da internet em pesquisas no Google Images.


23 de abr. de 2015

Vamos fazer do futuro um lugar que queremos visitar? Tradução de uma inspiradora mensagem de Stephen Hawking.




Há um tempo atrás, assisti a este vídeo que o Stephen Hawking publicou em sua página no Facebook e me encantei com a mensagem. Ele toca em um assunto no qual penso diariamente: Precisamos fazer do futuro um lugar que queremos visitar! 

Aproveitando que ontem, 22 de abril, foi o Dia Mundial da Terra e o fato de que Stephen Hawking ainda está sob os holofotes por causa do filme sobre sua vida, decidi traduzir sua mensagem para que ela chegue aos falantes da língua portuguesa que não falam inglês. O planeta Terra é a nossa única casa, e precisamos urgentemente mudar a nossa mentalidade de "proprietários" para a de "inquilinos", porque é isso que somos. Estamos aqui de passagem, depois de um tempo, nós partimos, mas a casa fica, e precisa ficar em boas condições para os futuros inquilinos.

Com vocês, o Sr. Stephen com todo o seu senso de humor e sabedoria:

Tradução livre do vídeo de Stephen Hawking feito para Bill e Melinda Gates para o World Economic Forum. | Por Larissa Andrade.

Com o lançamento do filme A Teoria de Tudo (The Theory of Everything), achei melhor aparecer pessoalmente, senão as pessoas vão pensar que eu sou mesmo o Eddie Redmayne e ele não é tão bonito quanto eu.

O motivo pelo qual estou falando com vocês hoje é para somar a minha voz às daqueles que querem uma ação imediata quanto aos principais desafios que a nossa comunidade global enfrenta. Eu espero que em 2015 as pessoas com poder possam mostrar criatividade, coragem e liderança. Levantem-se perante os desafios das metas de desenvolvimento sustentável e ajam não por interesse próprio, mas pelo interesse comum. Estou muito consciente da preciosidade do tempo. Aproveitem o momento! Ajam agora!

Eu passei minha vida viajando por todo o universo dentro da minha mente. Por meio da física teórica, tenho tentado responder a algumas das grandes questões, chegou um ponto em que pensei que veríamos o fim da física como a conhecemos, mas agora eu acho que a maravilha da descoberta irá continuar por muito tempo depois que eu me for. Estamos perto de algumas dessas respostas, mas ainda não chegamos lá.

Isto é empolgante! Significa que há muito trabalho para uma nova geração.

Como o universo começou? Como a vida na Terra começou? Há vida lá fora? Eu espero que um dia a gente saiba, mas há outros desafios, outras grandes questões que precisam ser respondidas, e elas também precisam de uma nova geração que esteja interessada, empenhada e que entenda de ciência.

Como vamos alimentar nossa população em constante crescimento, fornecer água potável, gerar energia renovável, prevenir e curar doenças e diminuir as alterações climáticas globais? Eu espero que a ciência e a tecnologia respondam a essas questões, mas serão necessárias pessoas, seres humanos com conhecimento e compreensão, para implementar as soluções.

Uma das grandes revelações da era espacial foi a perspectiva que ela deu à humanidade sobre nós mesmos. Quando vemos a Terra a partir do espaço, nós nos vemos como um todo. Vemos a unidade e não as divisões. É uma imagem tão simples, com uma mensagem irrefutável: Um planeta, uma raça humana! Estamos aqui juntos e precisamos viver juntos, com tolerância e respeito. Nós temos que nos tornar cidadãos globais. Nossos únicos limites são a forma como vemos a nós mesmos, as únicas fronteiras são a forma como vemos uns aos outros.

Tenho tido o enorme privilégio de ser capaz de contribuir para a nossa compreensão do universo através do meu trabalho, mas ele seria um universo vazio não fosse pelas pessoas que eu amo e que me amam. Sem elas, a maravilha disso tudo se perderia em mim.

Lutemos para que cada mulher e cada homem tenha a oportunidade de viver uma vida saudável e segura, cheia de oportunidades e amor. Somos todos viajantes do tempo viajando juntos para o futuro, mas vamos trabalhar juntos para tornar esse futuro um lugar que desejamos visitar.
Seja corajoso. Seja determinado. Supere as adversidades. Isso pode ser feito!

Obrigado pela atenção.   
 

7 de abr. de 2015

O dia em que eu morei em São Paulo

Sampa, minha casa por 1 dia.
Eu poderia me candidatar a entrar pro Livro dos Recordes por causa dessa história que vou lhes contar:

O ano era 2005, eu vivia no Rio de Janeiro, dividindo um apartamento bem legal com uma amiga em Copacabana. Após 3 meses de trabalho como gerente administrativa de uma empresa, o dono da empresa me deu a aterradora notícia de que devido a uma reestruturação o meu cargo seria extinto, ou seja, eu ficaria sem emprego e não tinha direito a auxílio desemprego por causa do pouco tempo de serviço.

Mais uma vez, a montanha-russa da minha vida fez um "looping" e lá estava o mundo todo de cabeça para baixo! Avisei a todos os meus amigos que estava procurando emprego e comecei a mandar currículo a torto e a direito, até que 3 meses depois de "Lamentamos informar que..." um grande amigo que morava em São Paulo me disse: "Sampa tem o mercado bem mais aquecido que o Rio. Pega seu CV, suas roupas e o que for essencial e vem passar um tempo aqui na minha casa. Moro sozinho num apartamento de 3 quartos, você fica comigo o tempo que precisar e vamos disseminar o seu CV por aqui, você vai encontrar algo rápido". 

Diante de um convite desse e já sem saber como faria para pagar o próximo mês de aluguel, eu conversei com meus pais, que como sempre, me apoiaram, informei à moça com quem dividia o apartamento que iria sair no final do mês e, depois de 3 festas de despedida e muitas lágrimas derramadas, minha irmã e meu grande amigo Xande* foram me levar na rodoviária do Rio de Janeiro para a minha viagem em busca de um lugar ao sol em Sampa.

Seis horas depois, por volta das 18:00 de um domingo de março, eu desembarcava na enorme rodoviária de São Paulo, cheia de caixas, porque eu não tinha malas suficientes para levar "o essencial". Naquela época, eu não conhecia o meu marido e ainda não tinha aprendido a ser compacta nas viagens. Meu amigo anfitrião foi me buscar e quando me viu, deu uma gargalhada e disse: "Você tá parecendo a Senhora do Destino com todas essas caixas!", fazendo uma alusão à retirante da novela que estava no ar naquela época. Ao chegarmos na casa dele, conheci o seu namorado, que era dono de uma badalada casa noturna de Sampa. Ao ver o meu CV, ele disse que poderia ter uma vaga para mim no escritório da empresa dele, que era para eu entrar em contato com a gerente administrativa dele no dia seguinte. Fui dormir radiante e cheia de expectativas! 

Na manhã seguinte, minha prima Maíla foi me ajudar a desencaixotar as minhas coisas e nunca esqueço dos olhinhos dela brilhando de felicidade quando ela me disse: "Ai, Lara, nem acredito que você vai morar aqui!" Depois de esvaziarmos todas as caixas, ela foi me levar para comprar uma linha de celular de São Paulo, mas antes disso, resolvemos parar para almoçar. Eu estava com a bandeja do self-service na mão quando o celular da Maíla tocou. Ela me passou o telefone com uma carinha murcha: "É o Xande, parece que você arranjou um emprego no Rio". Eu atendi o telefone e o Xande exultante foi logo dizendo (sem nem dizer "alô", como é característico dele): "Você tem que ligar pra Herbert Richers AGORA! Surgiu uma vaga lá e eles estão te caçando! Você tem que voltar pro Rio HOJE!" Eu olhei pra Maíla com o prato na mão e disse: "Prima, uma empresa pra qual eu tinha enviado CV em fevereiro tá me procurando pra preencher uma vaga com urgência". Vamos acabar de comer e voltar pra casa porque eu tenho que ligar pra eles. 

Liguei para a empresa e o diretor que me atendeu disse que havia surgido uma vaga de assistente administrativa bilíngue de última hora e que ele estava ciente de que eu tinha acabado de chegar em São Paulo (porque tínhamos um amigo em comum com quem ele havia entrado em contato procurando por mim), e terminou o telefonema dizendo: "Se você voltar pro Rio, não vai passar por processo seletivo, a vaga é sua." Eu, ainda trêmula, liguei pros meus pais, que nessa época moravam em Fortaleza. Meu pai sempre foi meu conselheiro em assuntos de trabalho e eu só conseguia tomar uma decisão de consciência tranquila depois de ouvir a opinião dele, ele sempre me passava aquela gota de convicção que me faltava: "Minha filha, apesar do salário não ser lá essas coisas, é algo seguro. Você tem perspectivas em São Paulo, mas não tem nada garantido. Aceite esse emprego, volte pro Rio e se reestruture, se não for o que você esperava, volte a procurar algo melhor, mas com calma e tendo um salário fixo pra pagar as suas contas e, além disso, no Rio você tem a sua irmã. Peque o primeiro ônibus que puder e volte."

Assim eu fiz. Já não tinha mais as caixas que havíamos jogado fora, então meu amigo me emprestou as malas dele, me levou voado para a rodoviária e às 17:00 de segunda-feira eu estava no ônibus para outras 6 horas de viagem até o Rio de Janeiro. Minha irmã foi me buscar na rodoviária do Rio naquela noite quase sem acreditar no que estava acontecendo e, como tinha sido tudo tão rápido, obviamente não deu tempo de avisar pra ninguém que eu estava voltando. Imaginem a cara de susto dos amigos que tinham ido às minhas festas de despedida quando davam de cara comigo na rua. Cheguei a ouvir de um deles a piadinha "poxa, se era pra saber o quanto a gente te ama, não precisava inventar que ia embora pra ver a gente chorando, bastava perguntar". 

No final das contas, passei mais tempo dentro do ônibus do que em Sampa propriamente e com essa experiência aprendi que, muitas vezes, a energia ao nosso redor está estancada e nada acontece, basta uma mudança de atitude ou, no meu caso, de cidade, para que a energia volte a fluir de forma favorável. A outra lição que tirei disso tudo, que não é novidade para mim tendo em vista que meus pais sempre me disseram isso, e nem pra ninguém, porque é uma conclusão bastante clichê, é que o maior tesouro que podemos ter são verdadeiros amigos. Porém, o que muitas vezes não enxergamos, é que um verdadeiro amigo não precisa estar ao seu lado o tempo todo em todas as fases da sua vida, basta estar lá na hora certa! 

Não citei o nome do grande amigo que se ofereceu para me acolher em São Paulo porque perdemos o contato há algum tempo e, sendo ele um cara super discreto, daqueles que nem página em redes sociais tem, não achei correto citar o nome dele sem antes consultá-lo, mas se um dia esse texto cair nas mãos dele, ele sabe quem é e sabe que nunca sairá das minhas lembranças, do meu coração e terá para sempre a minha gratidão. Em tempos de Facebook, em que uma amizade facilmente se desfaz por causa da falta de um "Like", achei relevante registrar esse episódio nas minhas histórias, pois eu mudo de cidade, de país, de continente, perco o contato com as pessoas, mas não perco as pessoas nem as substituo pelas novas que vou conquistando pelo caminho, apenas abro espaço no meu mundo que não tem fronteiras, mas cabe no meu coração.

*Xande é o meu grande amigo Alexandre Goldsmid, que me fez lembrar dessa divertida passagem da minha vida quando escreveu um "comentário-livro" na primeira postagem que publiquei aqui no blog: Começar de novo...